sábado, 15 de novembro de 2014

Manoel de Barros

Morre Manoel Wenceslau Leite de Barros, um dos mais originais poetas brasileiros.
Nasceu em Cuiabá, Mato Grosso do Sul,  no dia 19 de dezembro de 1916.
Tinha um ano de idade quando o pai decidiu fundar uma fazenda com a família no Pantanal onde construiu rancho, cercou terras, amansou gado selvagem.  Neguinho, como era chamado pela família, cresceu brincando no terreiro em frente à casa, pé no chão, entre os currais e as coisas “desinteressantes” que marcariam para sempre sua obra. Contou: “ali o que eu tinha era ver movimentos, atrapalhação das formigas, caramujos, lagartixa. Era o apogeu do chão e do pequeno.” Continuava falando do lugar que lhe deu inspiração: “passava os dias ali, quieto no meio das coisas miúdas. E me encantei.”
Graduou-se em Direito. Frequentou as escolas de Campo Grande. E, no Rio de Janeiro, quando cursava o internato São José na Tijuca, descobriu os sermões de Padre Antônio Vieira com quem aprendeu a “beleza da sintaxe.” Os dez anos de internato lhe ensinaram a disciplina e, na leitura dos clássicos, aprendeu a rebeldia da escrita.
O sentido de liberdade veio com a leitura do livro de Arthur Rimbaud, logo que deixou o colégio. Leu Marx e entrou para a juventude comunista. É interessante saber que seu primeiro livro, aos 18 anos, não foi publicado, mas salvou-o da prisão. Ele havia pichado “Viva o comunismo” numa estátua, e a polícia foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona da pensão pediu para não levar o menino que havia até escrito um livro. O policial pediu para ver, e leu o título: “Nossa Senhora de minha escuridão.” Deixou o menino e levou a brochura, o único exemplar que o poeta perdeu para ganhar a liberdade.   Depois, desiludido com a atitude de Luiz  Carlos Prestes, ele contou: “Quando escutei o discurso de Prestes apoiando Getúlio que havia entregue sua mulher, Olga Benário, aos nazistas, não aguentei: sentei na calçada e chorei. Saí andando sem rumo, desconsolado. Rompi com o partido e fui para o Pantanal.”
 Com passagens por Bolívia e Peru, morou também em Nova York por um ano onde frequentou os cursos de cinema e pintura. Voltando ao Brasil, conheceu a mineira Stella e se casaram logo. Tiveram filhos e netos.
Sua reclusão em terras pantaneiras e a timidez dificultaram a divulgação de sua obra.  Sobre seu isolamento disse: “Não tenho boa convivência com a glória. Acho que ela me perturbaria. Preciso muito do escuro”. Completou: “Sou recluso por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei rodas, nem mando bilhete. Uma vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade no Ministério da Educação, e ele anotou meu nome. Estou esperando até hoje.”  No entanto, em 1980 Millôr Fernandes e Antônio Houaiss começaram a divulgar seus versos ou citá-los em jornais.    Depois de descoberto por referências de amigos e pelos concursos literários, sua obra eclodiu. É o poeta que mais vende livros no Brasil. Publicou mais de trinta obras; algumas traduzidas para outros idiomas.
Alguns títulos: Poemas concebidos sem pecado| Face imóvel |Gramática expositiva do chão| Matéria de poesia|  Compêndio para uso dos pássaros| Arranjos para assobio| Livro de pré-coisas| O guardador das águas| Concerto a céu aberto para solos de aves| O livro das ignorãças| Retrato do artista quando coisa| O fazedor de amanhecer| “ O livro sobre nada” é sua obra mais conhecida.
            Conquistou duas vezes o prêmio Jabuti e outros importantes concursos do país, incluindo o da Academia Brasileira de Letras e Cecília Meireles.
Guimarães Rosa comparou seus versos a um doce de coco. Carlos Drummond disse ser ele o maior poeta brasileiro vivo. Pascoal Soto, diretor editorial da Leya e amigo do poeta o descreveu: “ Manoel era único, original, é o poeta dos restos, ele fazia poesia com cacos de vidro, com feixes de rio, com tudo que era desprezado, com tudo que era lixo. Era o poeta dos andarilhos, dos mendigos, daquilo que é rejeitado. O poeta daquilo que a gente não lembra. Aquilo que era senso comum não tinha vez na poesia dele. E era um homem amigo, extremamente carinhoso, de uma generosidade tremenda. Era incrível, bem humorado, sorriso fácil. Grande sujeito.”
Poeta o tempo inteiro, seus versos são carregados da natureza com a qual se envolveu de corpo e alma: “Eu queria crescer para passarinho.”   Mais adiante: “Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando.”   Mostrando que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança, escreveu: “A quinze metros do arco-íris, o sol é cheiroso.” Quem poderá desmentir? Resta ao leitor imaginar e visitar o outro lado das estrelas.
Ao ler Manuel de Barros, a gente se encanta logo, mas não consegue definir sua poesia. Todos os elogios são válidos, mas não são suficientes, falta sempre alguma expressão definitiva. Como a música e o amor, Manuel de Barros é estado de graça indefinível. Por isso seu lugar estará sempre vazio, e sua obra emocionando sempre.
Se “poesia é voar fora das asas”, ele está hoje em estado de céu poetando  além das palavras.     Para nos despedirmos dele, só mesmo  roubando um tico de seu talento: “Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz”.